É preciso repensar a cultura da judicialização dos conflitos, defende desembargadora do TJ; veja entrevista

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O Brasil tem hoje 206 milhões de habitantes e nossa Justiça, 102 milhões de processos*. É quase 01 processo para cada 02 habitantes. Vivemos a cultura do “processismo”. Sintoma de uma crise grave: quando as instituições falham, tudo fica judicializado. Na esfera política, isso é visível. Processos do Ministério Público (MP) para que o Estado forneça medicamentos genéricos, pagamento de Revisão Geral Anual (RGA) sob júdice, a disputa recente sobre retomada de obras do Veículo Leve Sobre Trilhos (VLT) e as reformas da Arena Pantanal. Na esfera familiar, empresarial e do consumidor, nem se fala: são brigas de vizinhos, divisão de bens entre separados, guarda de filhos sob disputa, rescisão de contratos, troca de produtos com defeito, etc. Tudo é levado para o Tribunal e de lá, só saem resolvidos após anos de dor de cabeça e honorários à pagar.
O que poucos sabem, entretanto, é que existe um meio termo entre “bater boca” por um problema simples e em uma sentença judicial dolorosa e formal: a mediação e a conciliação. Institutos previstos na Lei 13.140/2015 e que evitam que conflitos sejam levados à justiça. Esse instrumento se apresenta como capaz de resolver disputas em sessões de 3h, firmando acordos pacificos para conflitos entre ex-marido e ex-esposa “inimigos para sempre”, ex-patrão e empregado recém demitido, consumidor revoltado e comerciante desesperado, o morador da casa n.10 e a vizinha fofoqueira do 12.
Quem explica em detalhes ao Olhar Jurídico o sucesso desse instituto em Mato Grosso é a desembargadora da Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça (TJ) Clarice Claudino da Silva. Ela ainda defende que, à despeito de suposta disputa, advogados se integrem à mediação e encontrem nela um novo nicho de mercado. A desembargadora foi convidada especial do “II Almoço com Mediação”, iniciativa encabeçada pela advogada, mediadora e conciliadora Nalian Cintra. O evento ocorreu na última quinta-feira (23), em um restaurante da capital.
“Eu cito sempre o exemplo” – conta a desembargadora – “de um juiz que julgou um caso trabalhista marcante. Era um senhor que fez uma reclamação trabalhista contra a ex-patroa. Ele mandou chamar um mediador, que aplicou técnicas e, no fim das contas, o que verdadeiramente aquele cidadão queria? Se casar com a pessoa contra a qual ele estava reclamando. Ele não era empregado dela, era um namorado ou um ‘namorido’, qualquer coisa que se chame hoje. Ele queria casar com ela e ela não queria. Ele ficou magoado e isso inviabilizou a comunicação entre eles. Ele não conseguiu expressar o que queria e ela também não. Foram ao Tribunal reivindicar uma reclamação trabalhista, quando na verdade ele queria apenas usar da reivindicação trabalhista para que ela sofresse. Dizem que o ponto mais fraco do ser humano é o bolso. É claro, com este exemplo, que quando aplicamos a técnica adequada, chegamos à lide sociológica, o pano de fundo daquela situação. Algo que na sentença não se alcança, pois fica muito restrito ao que está no processo, ao que as partes falam ou sentem o juiz não pode levar para a sentença, mas o mediador pode”.
Como está a mediação em Mato Grosso?
“Mato Grosso têm se despontado, inclusive com resultados muito próximos, em alguns anos até superiores, aos grandes tribunais. Mato Grosso tem um Tribunal de médio porte. Em todos os anos, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) faz um ranqueamento e publica os resultados, e nosso Estado tem se despontado. No segmento da mediação temos conseguido até, no ano passado, presidir o Fórum Nacional. Mato Grosso foi o segundo tribunal do país a ter este cacife de presidir o Fórum Nacional. A nossa respeitabilidade hoje no cenário nacional é muito boa. Estamos em uma estruturação excelente. As administrações, desde 2011, tem priorizado essa política de tratamento adequado de conflitos”.
Como?
“Investindo maciçamente na capacitação e no refinamento das técnicas (de mediação e conciliação), formando uma equipe de instrutores, para o Estado ser independente, não precisar importar mão de obra para promover cursos, nós levamos nosso pessoal até onde tinham os melhores instrutores e depois eles vieram até nós. Nós começamos aí nossa independência. Temos instrutores da melhor qualidade”.
Quantos atuam nesse instituto?
“Temos dificuldade em falar de números, pois trabalhamos com voluntários. Servidores, mesmo, temos um em cada Sejusc, aí em cada Comarca o juiz faz as parcerias. Às vezes com a prefeitura, às vezes com a faculdade. Agora, recentemente, celebramos uma parceria muito importante com a Defensoria. Então é muito variável, não temos esse viés de quantificar. Mas, para se ter uma ideia, nestes cinco ou seis anos, já capacitamos mais de duas mil pessoas. Claro que nem todas elas estão atuando, porque o primeiro momento não era em se preocupar em ter um mediador, mas ter alguém que topasse a ideia, que aceitasse a cultura. A gente investiu massiçamente na capacitação”.
O que é necessário para se tornar um mediador?
“Na prática, temos a Lei da Mediação, o marco legal, antes da lei, tínhamos a chamada entre voluntários, na cidade, para aqueles que tivessem o perfil mínimo de lidar com o público. Hoje, a lei exige que a pessoa tenha no mínimo dois anos de formação em um curso superior, pois não é uma técnica privativa do operador do direito, o psicólogo vai bem como mediador e às vezes até precisamos de um profissional deste como mediador, pois o conflito tem um viés psicológico forte. Às vezes é necessário um mediador médico ou engenheiro. Essa gama de saberes se complementam”.
Quais os conflitos mais comuns em Mato Grosso?
“Família, conflitos familiares como disputa de guarda, dificuldades de partilha, inventários bastante dolorosos e prolongados, questões relativas à violência doméstica, contra a mulher e questões envolvendo menor infrator. Neste segmento é o que temos maior atuação do mediador. Mato Grosso tem até mesmo no segmento do meio ambiente. Temos Sejusc para estas questões”.
A mediação busca necessariamente um acordo, nunca uma decisão, nunca uma sentença?
“Na verdade a mediação busca o entendimento, pois primeiro ela trabalha a comunicação entre as pessoas, quando elas estão com dificuldades de entender os seus sentimentos e objetivos e às vezes transferem esse emocional para um problema, que nem sempre é o que ele pretende, mas usa o conflito como arma de vingança, vamos supor, logo esse componente desvirtua a comunicação entre as pessoas. Às vezes um fala e o outro sujeito não compreende e já tira conclusões, não ouve. O mediador vem com essa função: reestabelecer a comunicação entre as pessoas. De posse desta comunição, que elas possam pensar em soluções que sejam boas para as duas partes. Às vezes eles chegam à conclusão que não é possível um acordo integral, mas alguns pontos já foram superados. Às vezes vão amadurecendo aos poucos as soluções que vem pensando. O foco da conciliação é o acordo, da mediação não, é a comunicação entre as pessoas, para que elas tomem conta de seu próprio destino, construindo juntas. Isso com o auxilio do mediador, que não dará sugestões, mas apenas usará técnicas para que elas entendam o que estão realmente querendo”.
Por que se fala em certo conflito entre mediadores e advogados?
“A mediação é eminentemente voluntária, as pessoas tem que querer, isto começa com um trabalho de sensibilização, de despertar o interesse. Nisso, os advogados entram como um segmento muito importante, pois muitas pessoas acharam que quando abrimos o Sejusc as pessoas não iriam procurar o advogado mais, que as pessoas iriam para o Sejusc e o advogado ficaria sem seu mercado de trabalho. Temos mostrado que isso não é verdade. O advogado que estiver atento, acompanhando estas transformações, tem um nicho novo de mercado. Ele irá incentivar seu cliente, inclusive aquele que for até seu escritório, à procurar o Sejusc, acompanhá-lo e resolver de forma rápida, econômica e sem traumas aquele problema. E mais, a lei assegura ao advogados os honorários conciliatórios. Não há o que temer, mas muitos ainda continuam com certo receio”.
A mediação e a conciliação evitam a cultura da judicialização dos problemas diários? A cultura do processismo?
“Não só acredito como os números falam por si. Temos 200 milhões de brasileiros e mais de 100 milhões de processos, isso é uma clara demonstração de que litigamos (disputamos na justiça) demais e conversamos de menos. Nós nos desentendemos com muita facilidade. É um momento de emancipação cultural e emocional da população, que começa a repensar essa cultura. Os advogados, como atores principais deste cenário fomentador de litígio, é um prato cheio para que façamos a torcida para que eles realmente compreendam e abracem essa causa”.
O almoço:
O evento “Almoço com Mediação” já está em sua segunda edição e busca difundir e debater métodos eficazes e adequados de resolução de conflitos, em especial, a mediação. O instituto busca evitar a leva de conflitos simples para os Tribunais de Justiça, pesando ainda mais o Poder Judiciário. São formas reconhecidas pela Justiça Brasileira de se resolver embates por meio de acordo entre as partes. Estes serviços podem ser contratados em sua modalidade pública, sem custos, ou terceirizados, onde há investimento financeiros das partes.
Estas alternativas têm se tornado cada vez mais comuns por aqueles que querem resolver um conflito de forma rápida e baixo custo. Algumas das aplicabilidades do instituto são: conflitos comerciais (consumidor e comerciante), médicos (entre pacientes e hospital), conflitos desportivos (comercialização de jogadores), familiares (pensões e desentendimentos entre pais separados), etc.
A idealizadora do almoço, Nalian Cintra, avalia. “Esse evento surgiu de forma singela, em que me inspirei em outros almoços, de outros Estados, e como conheci a mediação de maneira branda, serena e eficaz, tenho essa vontade de mostrar aos colegas advogados e para a sociedade o que é e como funciona a mediação, que é um dos meios de resolução de conflitos. Tenho todo o interesse que a sociedade abrace essa causa, da mesma coisa que eu vi que é a forma mais justa, a efetivação do direito em si. As partes saem satisfeitas. Foi-se o tempo em que os processos se arrastassem por anos e anos. Hoje em dia isso é mais rápido, célere e eficaz”.
David Santiago, que conhece com profundidade o instituto da conciliação e da mediação em Portugal e na Inglaterra, avalia os pontos positivos de se evitar abertura de processo jurídico. “Uma ação no Tribunal nunca se sabe quando vai acabar, além do problema de falta de confidencialidade que você terá, pois quase todo processo é público no Tribunal. Assim, se você tem um conflito com seu vizinho, com seu parente, e vai levar ao Tribunal? Você vai lavar roupa suja no Tribunal. Porque é um método muito adversarial, você precisará expor sua intimidade. Na mediação isso não acontece. Tudo o que for falado é confidencial. Ainda, a pessoa que está ajudando as partes não é a pessoa que vai decidir por elas, não é como um juiz ou um árbitro que dirá: ‘essa é a solução para vocês’. O que sucede é que as partes deverão fazer um trabalho de autoconhecimento para saber qual é realmente o problema, qual a necessidade”.
* Dados de “Justiça em Números 2016”: http://s.conjur.com.br/dl/justicaemnumeros-20161.pdf
Por Paulo Victor Fanaia Teixeira – Da Redação
Fonte: Olhar Jurídico – 02 Abr 2017 – 15:00
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2 de abril de 2017 |

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