Ideal e realidade na proibição de filtros para ingresso no Judiciário

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A Constituição Federal de 1988 foi elaborada e editada em um momento de euforia nacional. Passados 20 anos sob o regime militar e mais quatro em regime de adequação aos novos tempos, eis que chegava a esperada fase de democracia plena.
Sonhos, anseio de solidariedade social e também corporativismo dos mais diversos atores foram colocados na nova Constituição. Nela, entraram artigos curiosos, como a previsão de o Colégio Dom Pedro II, no Rio de Janeiro, permanecer na órbita federal (artigo 242, parágrafo 2º), e algumas espertezas, como a criação de foro privilegiado para prefeitos, no capítulo que dispõe sobre municípios, e não no que trata do Poder Judiciário (artigo 29, X).
Para que a CF não atingisse mil artigos, o que deixaria mal o Brasil perante a comunidade internacional, pelo tamanho inusitado — para não dizer ridículo —, colocaram-se parágrafos e incisos sem economia.
E assim, em uma euforia sem precedentes, muito maior do que ao tempo da democrática Constituição de 1946, entrou em vigor a nova Lei Maior. Promessas sem fim, saúde, educação, lazer, segurança, transporte, tudo que um estado de bem-estar social poderia oferecer. Não ficaríamos devendo nada a Canadá, Suécia, Dinamarca e outro países preocupados com a plena assistência a cada cidadão que nele tivesse nascido ou por ele tivesse sido adotado.
Porém, entre os múltiplos sonhos e propostas, faltou quem, dotado de espírito pragmático, com os olhos no horizonte (objetivos), mas os pés no chão (Brasil real), viesse a chamar a atenção para o fato de que tínhamos também as nossas limitações.
E foi assim que, entre os bem intencionados dispositivos, constou no artigo 5º, que trata dos direitos e garantias individuais, o seguinte inciso:
XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Justificar esse inciso é fácil. Não é preciso recorrer a autores estrangeiros para sustentar que nada deve ser subtraído da apreciação do Judiciário, a fim de que juízes com todas as garantias de imparcialidade (por exemplo, inamovibilidade) possam dar a palavra final. Não há quem seja contra.
Mas há uma consequência, certamente não levada em conta pelos congressistas quando da elaboração da Carta Magna: a abertura total sobrecarrega, encarece e inviabiliza o sistema.
Em levantamento feito pelo Conselho Nacional de Justiça, constatou-se que no ano de 2015 tramitavam nada menos que 99,7 milhões de processos na Justiça brasileira[i]. Obviamente, isso tem um preço, resultado de compras, construções, aluguéis, serviços, vencimentos, aposentadorias, cursos de capacitação e outras tantas necessidades para sustentar centenas de unidades judiciárias espalhadas pelo território nacional.
O resultado é que “o Poder Judiciário brasileiro é um dos mais caros do mundo. Segundo dados consubstanciados por Luciano da Ros, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em estudo intitulado O Custo da Justiça no Brasil, com exceção de El Salvador, com expressivos 1,35% do PIB, o Brasil tem o Judiciário mais dispendioso do mundo, com gastos (em 2014) na ordem de R$ 68,4 bilhões (1,2% do PIB), em comparação com os EUA (0,14% do PIB), a Itália (0,19% do PIB) e a Alemanha (0,32% do PIB). Portanto, nas olimpíadas judiciais nosso país tem grandes chances de subir ao pódio”[ii].
E o que é pior, com todo esse vultuoso custo, a insatisfação é geral, porque as demandas prolongam-se excessivamente no tempo.
Pois bem, nunca é demais lembrar que o equilíbrio entre a demanda e a prestação dos serviços não vale apenas para o sistema de Justiça, mas para tudo. Não por acaso classes de aula têm número máximo de alunos, ônibus têm número limitado de passageiros e até um estádio de futebol não pode passar de um número certo de assistentes.
O acesso tem que ser proporcional ao limite possível. O sistema deve ser sustentável, pois, caso contrário, ele absorverá tudo, mas não dará conta de nada. E é isso que está acontecendo no nosso sistema de Justiça.
Ficando apenas na esfera cível, observo que tudo, absolutamente tudo, é levado ao Judiciário. Há inúmeros exemplos disso, mas, para ficar apenas em um, recordo-me de um casal residindo em municípios diferentes e, desejando fazer o casamento religioso na Igreja Católica, recusava-se a cumprir a exigência do Código Canônico de publicar os editais na paróquia do domicílio de cada um. Ingressaram na Justiça de uma capital sulina e conseguiram uma liminar dispensando um deles de publicar o edital. O Judiciário foi chamado a pronunciar-se sobre uma regra religiosa e de cumprimento voluntário. No caso, conseguiram autorização do Judiciário para descumprir a exigência.
Claro que não é essa a única causa da lentidão da prestação jurisdicional. Há outras, como a existência de quatro instâncias, o excessivo número de recursos ou o formalismo excessivo na execução da sentença. Mas o acesso absoluto e irrestrito ocupa a primeira posição no ranking da demora na solução dos conflitos. E em nenhum país adiantado do mundo se concede tal tipo de abertura, porque pessoas responsáveis sabem que ela significa decretar a falência do sistema.
Vejamos as tentativas de solução e o que pode ser feito. Porém, fique claro desde logo, nem de longe se está a propor a proibição de as pessoas discutirem os seus direitos. Não, evidentemente. O que se está a fazer é refletir para que se criem alternativas que atendam aos interessados e viabilizem o sistema.
Algo já foi feito nesse sentido. A criação de juizados especiais para os casos de menor repercussão econômica (até 40 salários mínimos na Justiça estadual). Ajudaram muito, mas não resolveram. Eles receberam tantos processos que se tornaram, também, morosos. E isso sem diminuir os serviços das varas.
A arbitragem é uma solução alternativa interessante, mas restrita a discussões de vulto econômico entre empresas, e não às controvérsias do dia a dia.
A tentativa prévia de conciliação judicial, às vezes chamada de mediação, também foi implantada, inclusive com expressa exigência no novo Código de Processo Civil. Todos os tribunais, pela Emenda 2/2016, que alterou a Resolução 125/2010 do CNJ, determinaram a criação de núcleos de conciliação.
No entanto, apesar de serem todas louváveis iniciativas, não se pôs fim ao crescente número de litígios existente. Obviamente, é preciso mais, muito mais. É preciso solução cirúrgica, e não homeopática. Inclusive porque o congestionamento tende a se agravar. Por exemplo, a decisão do Supremo Tribunal Federal em conceder indenização por dano moral a um preso em más condições, sem qualquer análise do mérito, significará milhares de ações semelhantes Brasil afora. Agravará a já debilitada situação do sistema.
Assim sendo, oportuno seria a criação de uma comissão pelo CNJ, com cinco pessoas de notória experiência, três do Poder Judiciário, uma da advocacia e uma do Ministério Público, para que, aberta a possibilidade de sugestões em 30 dias, proponha, em 60 dias, sugestões para avaliar as hipóteses em que, sem ofensa ao artigo 5º, inciso XXXIV da Constituição, seria possível reduzir o acesso ao Judiciário, possibilitando aos interessados discussão prévia em outra esfera.
Não se diga que isso é inviável por ofensa ao princípio da inafastabilidade da jurisdição. O próprio STF, por seu Plenário e de forma unânime, sensível ao problema das milhares de ações de natureza previdenciária, decidiu que:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. PRÉVIO REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO E INTERESSE EM AGIR.
2. A concessão de benefícios previdenciários depende de requerimento do interessado, não se caracterizando ameaça ou lesão a direito antes de sua apreciação e indeferimento pelo INSS, ou se excedido o prazo legal para sua análise. É bem de ver, no entanto, que a exigência de prévio requerimento não se confunde com o exaurimento das vias administrativas[iii].
É dizer, a jurisdição não está afastada, exige-se apenas que o órgão previdenciário saiba o que pleiteia e, se for o caso, defira.
Se somos um povo que se orgulha de ser criativo, usemos nossa criatividade para solucionar um problema crônico que se agrava a cada dia. Usemos nosso orgulho para algo útil à nação.
[i] http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/politica-nacional-de-priorizacao-do-1-grau-de-jurisdicao/dados-estatisticos-priorizacao, acesso 10/3/2017.
[ii] Reis Friede, “O Judiciário mais caro do mundo”, em  http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,o-judiciario-mais-caro-do-mundo,10000060068, acesso 10/3/2017.
[iii] SEGUNDOS EMB. DECL. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 631.240 MINAS GERAIS RELATOR: MIN. ROBERTO BARROSO, j.16/12/2016, acesso 10/3/2017.
Por Vladimir Passos de Freitas, desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 12 de março de 2017, 8h10
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12 de março de 2017 |

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