Direito Marítimo e Arbitragem

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Em seu livro Ninety Percent of Everything (em tradução livre: “Noventa por cento de tudo”), lançado em 2014 na Inglaterra e ainda sem versão em português, a jornalista e escritora britânica Rose George, após passar meses viajando em navios maiores do que campos de futebol, estimou que quase 90% de tudo que consumimos chega às nossas mãos por navios. A conclusão de Rose é que, apesar de pouco notada no cotidiano, a atividade de transporte marítimo alimenta, veste e diverte a todos. Nas palavras de Rose, os navios “são a razão por trás da sua camisa barata e da sua televisão a preço razoável. Mas quem olha para trás de uma televisão para saber que navio a trouxe? Quem se importa com os homens que trouxeram o seu cereal matinal em meio a tempestades de inverno? Como é irônico o fato de que quanto mais os navios se agigantam, menos espeço eles ocupam em nossa imaginação”.
A perplexidade da jornalista britânica é justificável. Segundo dados divulgados pela International Chamber of Shipping, os números dessa indústria são impressionantes. Existem, aproximadamente, 50 mil navios cargueiros ao redor do mundo, transportando mais de 20 milhões de containers, em uma atividade que emprega em torno de 1,5 milhão de pessoas. Os maiores navios chegam a custar 200 milhões de dólares e movimentam, em valor de produtos transportados, mais de quatro trilhões de dólares anualmente. Trata-se, ainda segundo a jornalista britânica, da atividade comercial mais importante do planeta, sem a qual a globalização não teria ocorrido da forma como a conhecemos.
No âmbito do Direito, dentre outros aspectos, merecem reflexão mais aprofundada os mecanismos de resolução de conflitos utilizados pelos agentes do setor marítimo. As cláusulas arbitrais, que retiram as controvérsias do Poder Judiciário e as submetem a um ou mais árbitros, estão cada vez mais presentes, por exemplo, nos contratos de transporte marítimo de cargas, afretamento, construção de embarcações, salvamento marítimo e seguro, sendo utilizadas como modo de obter soluções de melhor qualidade e mais céleres para os litígios contratuais.
As partes contratantes, de forma geral, costumam indicar as seguintes vantagens decorrentes da adoção das cláusulas arbitrais: (i) possibilidade de os contratantes elegerem, de comum acordo, prévia ou posteriormente à instauração da controvérsia, um ou mais árbitros com conhecimento técnico da matéria para solucionarem o litígio; (ii) maior celeridade; (iii) possibilidade de as partes definirem com maior autonomia questões relacionadas ao procedimento; (iv) confidencialidade; e (v) caráter definitivo da sentença arbitral, exceção feita às hipótese do art. 32, da Lei de Arbitragem, que prevê casos pontuais em que a sentença arbitral estará sujeita à anulação pelo Poder Judiciário.
Especificamente em relação ao setor marítimo, cujos contratos frequentemente envolvem partes de diferentes nacionalidades, a arbitragem é largamente utilizada como forma de mitigar as incertezas relacionadas às diferentes jurisdições que poderiam ser acionadas em caso de um litígio contratual. A arbitragem, nesses casos, costuma representar mecanismo capaz de evitar questionamentos quanto à jurisdição competente para a solução do litígio e a lei aplicável, uma vez que as partes, salvo casos excepcionais, costumam definir com antecedência, já na própria cláusula arbitral, a sede da arbitragem e a lei aplicável à solução do litígio. É igualmente possível escolher árbitro ou Tribunal Arbitral não necessariamente vinculado ao ordenamento jurídico das partes envolvidas no litígio, tornando-o, teoricamente, mais equidistante por óbvias razões.
No que se refere às instituições arbitrais, embora não seja incomum arbitragens marítimas se processarem nos grandes centros arbitrais como a International Chamber of Commerce – ICC, verifica-se uma certa especialização de algumas entidades, como, por exemplo, dentre outras, a: (i) LMAA – The London Maritime Arbitrators Association; (ii) Singapore Chamber of Maritime Arbitration – SCMA; e (iii) Society of Maritime Arbitrators, com sede nos Estados Unidos. No Brasil, merece destaque a recente criação do Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima – CBAM, impulsionada pelo notável crescimento do número de embarcações e da indústria naval brasileira nos últimos anos para atender a indústria petrolífera offshore.
Inúmeros fatores podem influenciar na escolha da entidade perante a qual a arbitragem será processada, mas é importante destacar que a sentença arbitral estrangeira, ou seja, aquela proferida fora do território nacional, deve ser homologada pelo Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), para que seja reconhecida ou executada no Brasil.
Alguns esforços legislativos recentes convergem em direção a um maior estímulo às arbitragens em território nacional, representados: (i) pelo art. 515, VII, do NCPC, segundo o qual a sentença arbitral continua a ostentar natureza de título executivo judicial, sendo exequível perante o Poder Judiciário em caso de não cumprimento voluntário; (ii) a criação do instituto da carta arbitral (art. 22-C da Lei de Arbitragem e art. 237, IV do NCPC), que facilita e torna oficial a comunicação entre a Corte ou Tribunal Arbitral e o Poder Judiciário; e (iii) o reconhecimento legislativo da possibilidade de requerimento de medidas cautelares ao Poder Judiciário anteriormente à instituição da arbitragem (art. 22-A, da Lei de Arbitragem), bem como diretamente aos árbitros quando a arbitragem já tiver sido instituída (artigo 22-B, parágrafo único, da Lei de Arbitragem), ambos os dispositivos introduzidos pela Lei nº 13.129/2015.
A respeito das medidas cautelares, tem sido debatida entre os agentes do setor a possibilidade de o árbitro ou Tribunal Arbitral conceder uma ordem de arresto de embarcação, caso a medida seja necessária para preservar o resultado útil do procedimento arbitral e esteja presente a plausibilidade do direito alegado. A análise do cabimento ou não dessa medida deverá ser realizada caso a caso, mas é importante destacar, a respeito do assunto, que o Novo Código de Processo Civil, ao extinguir as cautelares nominadas, revogou os artigos 813 e 814 do Código de Processo Civil de 1973, que continham requisitos específicos para a concessão das medidas cautelares de arresto, os quais tornavam razoavelmente complexa a concessão daquela medida. A ab-rogação dos citados artigos, aliada aos novos artigos 22-A e 22-B, parágrafo único, da Lei de Arbitragem, anteriormente citados, poderá facilitar o manejo dessa medida constritiva, muitas vezes fundamental à eficaz satisfação do direito contrariado, o que sempre dependerá do exame do caso concreto.
Merece destaque, ainda, a possibilidade de utilização da arbitragem para solução de controvérsias relativas a duas outras questões, a saber:
• débitos de tarifas portuárias e outras obrigações financeiras perante a administração dos portos e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários – ANTAQ, nos termos do art. 62, parágrafo 1º, da Lei nº 12.815/2013[1], regulamentada pelo Decreto nº 8.465/2015; e
• contratos de salvamento marítimo, nos termos do Decreto nº 8.814/2016, que recentemente ratificou no Brasil a Convenção Internacional sobre Salvamento Marítimo, firmada em 1989, em Londres.
As vantagens da adoção da arbitragem para a resolução de conflitos envolvendo contratos relacionados ao Direito Marítimo, desde que ostentem circunstâncias específicas, servirão de estímulo à utilização desse mecanismo às questões marítimas, regida por um dos mais antigos ramos do Direito, tão tradicional e relevante quanto a arbitragem em si.
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[1] “Art. 62. O inadimplemento, pelas concessionárias, arrendatárias, autorizatárias e operadoras portuárias no recolhimento de tarifas portuárias e outras obrigações financeiras perante a administração do porto e a Antaq, assim declarado em decisão final, impossibilita a inadimplente de celebrar ou prorrogar contratos de concessão e arrendamento, bem como obter novas autorizações.
§ 1º. Para dirimir litígios relativos aos débitos a que se refere o caput, poderá ser utilizada a arbitragem, nos termos da Lei no 9.307, de 23 de setembro de 1996.”
Por: Luis Claudio Furtado Faria – Pinheiro Neto Advogados; João Luis Aguiar de Medeiros – Pinheiro Neto Advogados e Erick Mateus Santos Faustino – Pinheiro Neto Advogados.
Fonte: Guia Marítimo – 10/01/2017 23:55
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10 de janeiro de 2017 |

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