Arbitragem administrativa no Brasil e em Portugal

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Como o Brasil pode aprender com Portugal quando o assunto é arbitragem? A Federação das Câmaras Portuguesas de Comércio no Brasil promoveu uma série de eventos e visitas técnicas a universidades e entidades lusitanas para que pudéssemos responder a esta pergunta.
Portugal atualmente conta com a Lei nº 63/2011, conhecida como Lei de Arbitragem Voluntária, e que em seu art. 1º (5) estabelece que “O Estado e outras pessoas colectivas de direito público podem celebrar convenções de arbitragem, na medida em que para tanto estejam autorizados por lei ou se tais convenções tiverem por objecto litígios de direito privado”. Também a Lei Brasileira de Arbitragem, reformada em 2015, hoje contempla regras específicas voltadas ao uso da arbitragem pela Administração pública direta e indireta, que somente poderá ser adotada para resolver litígios que versem sobre direitos patrimoniais disponíveis, devendo ser uma arbitragem de direito e respeitar o princípio da publicidade (arts. 1º, §1º c/c art. 2º, § 3º da Lei federal n. 9.307/96).
Embora os dois países insiram a arbitragem em suas respectivas jurisdições estatais, no que diz respeito à arbitragem o ordenamento português é mais explícito nesse sentido, pois constitucionalizou os Tribunais Arbitrais (Constituição de 1976, arts. 202º (4) e art. 209º (2)). Para além disso, Portugal permite que, desde que as partes assim convencionem, poderá haver recurso judicial contra a sentença arbitral para um Tribunal Judicial (lembrando que Portugal prevê a dualidade de jurisdição, comum e administrativa, diferentemente do Brasil, cujo sistema é de jurisdição uma).
Contudo, em Portugal, recentes inovações legislativas provocaram, de um lado, uma ampliação das matérias passíveis de decisão pela via da arbitragem e, de outro lado, uma hipótese de obrigatoriedade de recurso aos Tribunais Administrativos – até então inexistente na arbitragem administrativa – causando muita polêmica entre os arbitralistas locais. Há ainda uma busca por maior publicidade e transparência dos processos arbitrais envolvendo a Administração pública, agora materializada em regra legal especial, que passará a valer em 2018.
A reforma de 2015 do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA) alargou sobremaneira os casos em que a arbitragem administrativa pode decidir sobre litígios administrativos: “a) Questões respeitantes a contratos, incluindo a anulação ou declaração de nulidade de atos administrativos relativos à respetiva execução; b) Questões respeitantes a responsabilidade civil extracontratual, incluindo a efetivação do direito de regresso, ou indenizações devidas nos termos da lei, no âmbito das relações jurídicas administrativas; c) Questões respeitantes à validade de atos administrativos, salvo determinação legal em contrário; e d) Questões respeitantes a relações jurídicas de emprego público, quando não estejam em causa direitos indisponíveis e quando não resultem de acidente de trabalho ou de doença profissional (art. 180º )”.
Por seu turno, no que diz respeito à arbitrabilidade objetiva, a legislação brasileira – diferentemente da portuguesa – vincula o uso da arbitragem a litígios que versem sobre direitos patrimoniais disponíveis, dando a entender que seriam aqueles oriundos e afetos a relações eminentemente contratuais. Mesmo adotando a referência mais genérica e indeterminada dos direitos patrimoniais disponíveis, no que diz respeito à lista de matérias passíveis de arbitrabilidade, há uma tendência observada no direito brasileiro de passar a estipular em legislação especial (i) hipóteses temáticas taxativas ou exemplificativas enquadráveis como “direitos patrimoniais disponíveis” (Decreto n. 8.465/15, art. 2º; Lei federal n. 13.448/17, art. 31, § 4º) e (ii) prever casos de arbitragem administrativa obrigatória (Lei federal n. 13.448/17, art. 15, inc. III).
A outra inovação legislativa portuguesa, que passará a valer a partir de janeiro de 2018, veio a reboque do diploma legislativo que altera aspectos procedimentais e substanciais dos contratos públicos, prevista no Decreto-lei n. 111-B/2017. Refiro-me à previsão de recurso judicial contra determinadas sentenças arbitrais: “Nos litígios de valor superior a € 500 000, da decisão arbitral cabe recurso para o tribunal administrativo competente, nos termos da lei, com efeito meramente devolutivo”. A justificativa para esta hipótese de recurso judicial obrigatório envolvendo decisão arbitral parece ser uma resposta direta ao alargamento das matérias passíveis de resolução de litígios por arbitragem, acima referida. Ao Judiciário competiria um inédito papel de obrigatoriamente revisar o mérito de sentenças arbitrais que envolvam contratos públicos determinados. Ocorre que tal inovação vem provocando generalizada insatisfação na comunidade arbitralista portuguesa, que vê nesta regra um risco de tornar a arbitragem administrativa mais morosa – pois passa a depender do Judiciário para a sentença arbitral “transitar em julgado” – representando assim um retrocesso no tratamento normativo da arbitragem administrativa no país. Percebi nisso e em alguns outros temas uma certa tensão entre magistratura judiciária e comunidade arbitral, o que soa natural e até salutar para o incremento permanente da qualidade das atuações e decisões arbitrais.
A outra alteração digna de nota, também decorrente do Decreto-lei n. 111-B/2017, é que em Portugal “devem ser remetidas, periodicamente, à entidade diretamente incumbida de proceder ao acompanhamento do respetivo processo arbitral cópias dos atos processuais que sejam entretanto praticados por qualquer das partes e pelo tribunal, bem como dos pareces (sic) técnicos e jurídicos e quaisquer outros elementos relevantes para a compreensão, desenvolvimento ou desfecho da lide” (art. 342º (2)).
No que diz respeito ao Brasil, a hipótese de recurso judicial contra sentenças arbitrais não se coaduna com a legislação de arbitragem, a qual reserva às hipóteses restritas de ação anulatória do art. 32 a possibilidade de impugnação a posteriori da sentença arbitral. Entretanto, vale registrar que exsurge de lege ferenda na prática judicial brasileira, sobretudo atrelada às arbitragens administrativas, uma inusitada Ação Declaratória de Nulidade de Processo Arbitral, a qual visaria obstar um processo arbitral antes mesmo de sua efetiva instauração, sob o fundamento de que aquele litígio específico não teria por objeto direito patrimonial disponível. O tema é polêmico, pois se admitida tal possibilidade haveria uma escusa explícita de observância do princípio do Kompetenz-Kompetenz no sistema arbitral brasileiro, que passaria a ser  chancelada pelo Judiciário. Assim, cumpre realçar a importância do resultado do julgamento do Conflito de Competência n. 139.159-RJ pela 1ª Seção do STJ em 11.10.2017, cuja arbitragem que motivou tal discussão tinha como partes dois entes da Administração pública federal: Agência Nacional do Petróleo-ANP e PETROBRAS. Ficou registrado que cumpre exclusivamente ao Tribunal Arbitral decidir sobre sua própria competência, e não ao Judiciário.
Sobre a regra portuguesa de publicidade e transparência das arbitragens administrativas, arrisco dizer que trata-se de regra alinhada com a observância de exigência de publicidade dessa espécie de arbitragem no Brasil. Os órgãos de fiscalização e controle – Tribunais de Contas e Ministério Público, por exemplo – não são partes nos processos arbitrais, obviamente. Todavia, por deterem atribuições constitucionais, estes órgãos tem o dever de acompanhar e o direito de serem informados sobre o trâmite de eventuais processos arbitrais, sobretudo porque não são raras as vezes em que preexistem processos fiscalizatórios nesses órgãos que passam a conviver com o processo arbitral de resolução de litígios envolvendo entes da Administração pública. A pauta aqui talvez seja perquirir sobre como calibrar adequadamente a regra de publicidade e de transparência das arbitragens administrativas no Brasil, tema que ainda está em aberto, dependendo dos Regulamentos das Câmaras de Arbitragens nacionais – muitas em fase de revisão de seus regramentos para melhor disciplinar a matéria – e da prática dos Tribunais Arbitrais na gestão dessas arbitragens.
Na qualidade de único árbitro brasileiro convidado para participar dessa exitosa semana em Lisboa, identifico que estudos comparados envolvendo a arbitragem administrativa podem ser bastante proveitosos para o atual momento evolutivo do instituto e da cultura arbitral no Brasil. Outro projeto recente na linha comparativa, do qual tive a honra de escrever o capítulo sobre o Brasil, é a obra Comparative Constitutional Law of Private-Public Arbitration, a ser lançada em 2018 na Europa pela Oxford University Press, contendo estudos sobrearbitragem e Administração pública em mais de 30 países.
Em suma, acredito que esta semana em Lisboa teve como finalidade principal estreitar ainda mais os laços entre as comunidades arbitrais portuguesa e brasileira, estimulando novos passos desta parceria que certamente podem render bons frutos para ambas as partes. Creio que justamente aqui reside o móvel principal deste Acordo de Cooperação entre os dois países, pensado pelo Presidente da Federação das Câmaras Portuguesas de Comércio no Brasil, Nuno Motta Veiga Rebelo de Souza e pelo Presidente do CAESP, Cassio Ferreira Neto, e que contou com a competente  participação do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo – por meio do Conselheiro Dimas Ramalho e sua equipe, bem como da Diretora da Escola do TCE-SP, Dra. Bibiana Helena Freitas Camargo, além do Vereador Paulistano Caio Miranda Ribeiro e de membros do CAESP e da EPMESC.
Como o tema da arbitragem administrativa encontra-se em voga no Brasil, uma sugestão possível e que certamente conferiria maior segurança jurídica aos agentes públicos e privados envolvidos seria que os entes públicos, talvez estimulados e apoiados pelos Tribunais de Contas, criassem regulamentos internos de arbitragem administrativas, contendo orientações, guidelines e até um guia de boas práticas. Sempre tenho dito que previsibilidade e planejamento são chaves para uma arbitragem exitosa, e talvez tenha chegado a hora disso ser igualmente reconhecido pelo setor público. Precisamos dar passos adiante na prática da arbitragem com o Poder Público, e seria emblemático que os órgãos públicos revelassem maior cuidado com o tema, por meio da edição de regulamentos sobre a matéria.
Por Gustavo Justino de Oliveira
Fonte: Jota – 18/10/2017
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18 de outubro de 2017 |

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