Nova lei de mediação traz avanços no setor privado e retrocessos no público

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A comunidade jurídica brasileira, legalistas que somos, aguarda com ansiedade há anos a promulgação da nossa legislação sobre mediação de conflitos. O projeto de lei mais antigo sobre o tema foi iniciado na Câmara dos Deputados em 1998, sendo que, em 2011 e em 2013, três novos projetos foram apresentados no Senado e vieram a ser reunidos, com aprovação a toque de caixa. O primeiro foi elaborado por um Senador que contou com assessoria técnica especializada e, a exemplo do projeto de 1998 na Câmara, não tratava dos conflitos envolvendo o Poder Público. Os dois últimos tratavam da mediação judicial e da mediação extrajudicial de conflitos. O primeiro destes foi elaborado por Comissão de Especialistas nomeados pelo Ministério da Justiça, da qual participaram alguns mediadores experientes, representantes do Judiciário, do Ministério Público (ao menos em nível estadual), da Defensoria Pública (idem), da Advocacia-Geral da União e da área acadêmica, em alguma medida. Os critérios para a definição da composição da Comissão ou para escolha dos nomes não foram divulgados, mas foi divulgada sua existência e ela se reuniu durante alguns meses, inclusive colhendo opiniões de outros especialistas, e concluiu de forma satisfatória a sua incumbência. O anteprojeto virou projeto de lei, apresentado por Senador, não obstante elaborado no seio do Executivo. O segundo foi elaborado por Comissão de Especialistas nomeados pelo próprio Senado, coordenados pelo Ministro do STJ Luís Felipe Salomão, e também foi rapidamente convertido em projeto de lei. Trata-se de iniciativa de excepcional importância para avançarmos em direção a uma resolução de conflitos mais célere, menos onerosa, menos desgastante e de maior qualidade – e os projetos têm grande potencial no que se refere aos conflitos envolvendo apenas partes privadas, concretizando o acesso à justiça em sua plena dimensão.
O grande problema de tais projetos – notadamente por omissão, inicialmente – veio a ser o esquecimento daqueles que constituem 51% dos conflitos que tramitam atualmente em juízo no Brasil (temos cerca de 90 milhões de processos judiciais em andamento): os processos judiciais que têm de um ou de ambos os lados um ente público. Também foram esquecidos os milhões de processos administrativos que tramitam por anos perante os múltiplos órgãos do Poder Executivo federal, estadual e municipal.
O anteprojeto elaborado pela Comissão de Especialistas do Ministério da Justiça foi o que tratou melhor do tema, embora de forma ainda claramente insuficiente: previu apenas a possibilidade de utilização da mediação para solucionar conflitos envolvendo o Poder Público, sem esclarecer como se pode utilizar este caminho à luz dos princípios constitucionais que regem a Administração Pública: legalidade, isonomia e publicidade. Quanto ao princípio da eficiência, não é obstáculo e sim uma das grandes justificativas para a utilização do caminho consensual, ao passo que o princípio da moralidade também não é empecilho.
Entretanto, durante a tramitação do projeto, houve uma alteração significativa – como veremos, para pior – do capítulo que trata da resolução consensual de conflitos envolvendo a Administração Pública. A Advocacia-Geral da União, único setor da Advocacia Pública que teve representante na referida Comissão de Especialistas que elaborou o anteprojeto, elaborou um texto totalmente novo, tecnicamente inadequado e – pasmem – que viola norma constitucional da maior importância. Trata-se nada menos da norma que responsabiliza agentes públicos por seus atos – o art. 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal, após estipular que os entes públicos em geral respondem por seus atos de forma objetiva (independentemente de culpa), assegura ao Poder Público o direito de regresso em face de seus servidores pelos atos que eles praticarem com dolo ou culpa. A regra garante, simplesmente, que não sejam pagas pela “viúva” as ilegalidades, negligências, imprudências, abusos e outros erros injustificáveis praticados por servidores, que devem responder seus atos, assim como todos os demais mortais cidadãos brasileiros, sujeitos que somos às regras de responsabilidade civil. Quem causa dano, de forma dolosa ou culposa, deve indenizar.
O novo capítulo do projeto de lei, elaborado sem nenhuma discussão interna com os órgãos da Advocacia Pública dos Estados e Municípios e mesmo sem qualquer participação dos membros da Advocacia Pública federal, muito menos de outras carreiras jurídicas, dispõe que os “servidores e empregados públicos que participarem do processo de composição extrajudicial do conflito somente poderão ser responsabilizados civil, administrativa ou criminalmente quando, mediante dolo ou fraude, receberem qualquer vantagem patrimonial indevida, permitirem ou facilitarem sua recepção por terceiro, ou para tal concorrerem.”
É evidente a maior dificuldade da prova do dolo ou fraude, que sempre poderá vir disfarçada de mera negligência: “eu não percebi”, “eu não sabia”, “eu não verifiquei”, “eu não imaginei” – esse tipo de pretexto será frequente para caracterizar a mera culpa, que, ao arrepio do texto constitucional, não ensejaria a responsabilização do servidor “descuidado”. A falta de técnica do texto também é evidente, pois a mediação pode ser judicial ou extrajudicial, e não se tem aí simples “composição” do conflito, mas sim “autocomposição”.
Mas o maior perigo dessa regra reside na conjugação desse regime de irresponsabilidade (salvo dolo ou fraude) com a ausência completa de uma exigência de fundamentação adequada para os acordos que venham a ser celebrados envolvendo o Poder Público. O texto faz letra morta dos princípios da legalidade, da isonomia e da publicidade e não exige qualquer motivação para os acordos, escancarando a porta para os conluios em detrimento do interesse público pelo qual o Estado deveria zelar.
A justificativa apresentada para a inclusão de tal regra é pífia: os servidores públicos teriam medo de celebrar acordos e somente se sentiriam “à vontade” e estimulados se houver uma regra como esta. Ora, será que o que, nós, servidores públicos precisamos não é justamente de normas que estipulem parâmetros e procedimentos claros e transparentes para a celebração de acordos? Note-se que normas de tal natureza são praticamente inexistentes seja em nível legal – vide a Lei federal 9.469, de 1997, também elaborada pela AGU, que se limita a estabelecer as autoridades competentes para aprovar acordos, seja em nível infralegal, pois as normas da própria AGU não deixam claros os parâmetros para a celebração de autênticos acordos, autorizando-os apenas quando está claro que a Administração Pública deveria reconhecer integralmente o direito do cidadão (o que não é caso, tecnicamente, de transação – em que se paga menos do que o pedido, mas sim de reconhecimento da procedência do pedido). A nossa segurança só pode derivar da análise cuidadosa dos fatos, dos aspectos técnicos e das normas aplicáveis em cada conflito e isso se refletirá na fundamentação de cada acordo que venha a ser celebrado.
A pergunta que não quer calar é uma só: é possível a ampliação do acesso à justiça violando a Constituição Federal?
Que mensagem se passa aos agentes públicos envolvidos na negociação de possíveis acordos quando se estipula em uma norma legal que eles não respondem pelos seus erros?
Que segurança jurídica terão os envolvidos se: a) os acordos, como quaisquer atos praticados pelo Poder Público que violem normas legais, poderão ser anulados posteriormente; b) a lei que regular o assunto não exigir a devida cautela para fundamentação destes acordos, de modo a garantir que não se cometa nenhuma ilegalidade?
Caso se consume a aprovação do texto nestas condições (o que se espera que não aconteça, apesar do parecer favorável do deputado Sérgio Zveiter, relator do PL 7169/2014 na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara), precisaremos confiar na iniciativa dos legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade e em um julgamento técnico de nosso Supremo Tribunal Federal para expurgar essa violação frontal da Constituição de nosso sistema jurídico. Se não for assim, a mediação de conflitos, ao invés de ser um caminho para a sua resolução de forma rápida, eficiente e com maior qualidade, porém sempre fundamentada em fatos devidamente apurados e nas normas jurídicas aplicáveis, poderá ser, lamentavelmente, a nova tecnologia de ponta para a prática de atos de corrupção neste país.
Luciane Moessa de Souza é procuradora do Banco Central do Brasil, integrante da Associação dos Procuradores do Banco Central.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 21 de fevereiro de 2015, 7h30
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23 de fevereiro de 2015 |

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