Empresas forçam arbitragem para acabar com ações coletivas nos EUA

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Por volta da virada do século, advogados de grandes empresas americanas — bancos, operadoras de cartões de crédito e varejistas — se reuniram em Nova York e Washington para traçar um plano para pôr fim a um “mal” que afligia seus clientes: o frequente pagamento de indenizações milionárias, decorrentes de ações coletivas.
Encontraram uma solução simples e eficiente: colocar em contratos que firmavam com consumidores e empregados a frase “qualquer disputa será resolvida por arbitragem individual” — ou termos semelhantes. A arbitragem também seria “privada”, o que abria oportunidades para a contratação de um árbitro amigável.
A frase é inserida entre os termos finais de contratos com milhares de palavras jurídicas, “que ninguém lê”, de acordo com um “Relatório Especial”, publicado pelo jornal The New York Times. Ela está entre as famosas “letras miúdas” (“fine print”) dos contratos. Os consumidores e empregados a descobrem quando movem uma ação coletiva contra uma corporação e ela é extinta por força dos termos contratuais.
As corporações começaram a colocar em prática o plano e, como era de se esperar, houve reação e a prática terminou nos tribunais, percorrendo todas as instâncias, até chegar à Suprema Corte. O advogado que defendeu os interesses das corporações, sem sucesso, foi John Roberts, que um dia se tornou ministro da Suprema Corte e, mais à frente, presidente da corte.
A Suprema Corte de John Roberts, considerada a mais pró empresas de todos os tempos, tomou duas decisões favoráveis às companhias, em 2011 e 2013. Essas decisões “consagraram o banimento de ações coletivas através de contratos”, diz o relatório do New York Times. “Na época, elas pouco chamaram a atenção fora dos círculos jurídicos, apesar de haverem derrubado décadas de jurisprudência que garantiam proteção a consumidores e empregados.
As corporações argumentaram que ações coletivas eram desnecessárias, porque a arbitragem possibilitavam a indivíduos resolverem suas queixas facilmente. Porém, registros de tribunais e de arbitragem obtidos pelo jornal mostram que ocorre o contrário. Uma vez que a ação coletiva é bloqueada, a maioria das pessoas envolvidas desiste de lutar por sua causa.
O “Relatório Especial” do New York Times, recheado de exemplos de frustrações de consumidores e empregados, cita o caso de uma ação coletiva, formada por 900 consumidores, contra uma empresa telefônica. Os consumidores queriam disputar a cobrança de uma multa de cancelamento de serviço, no valor de US$ 600. Uma vez que a ação foi bloqueada, ninguém se dispôs a participar de arbitragens individuais, porque o custo seria muito maior que o da causa.
Segundo o relatório, de 2010 a 2014, foram movidas apenas 1.179 ações coletivas contra empresas. Desses casos, os juízes decidiram pela extinção da ação, a pedido de companhias, que apresentaram contratos com a cláusula de arbitragem, em quatro em cada cinco processos. Apenas em 2014, foram movidas 162 ações, das quais 134 foram rejeitadas.
Em casos em que consumidores ou empregados pensaram que a arbitragem poderia lhes ajudar em disputas contra operadoras de cartão de crédito, bancos e varejistas, cerca de dois terços perderam, afirma o jornal.
Assim, as decisões da Suprema Corte “se tornaram uma proeza jurídica de um grupo de advogados corporativos, que descobriram como costurar a cláusula de arbitragem com o banimento de ações coletivas”, diz o relatório.
Nos últimos anos, a prática se alastrou por todo o país. Essas cláusulas em “letras miúdas” são encontradas em contratos de cartão de crédito, operações bancárias, compras em grandes lojas varejistas, de vendas e leilões online, companhias de TV a cabo, de serviços telefônicos, de eletricidade e gás, provedoras de internet, locadoras de carro, de transporte, viagem e turismo e outras tantas organizações.
Mas não se limitam a essas organizações mais óbvias. A prática foi adotada, por exemplo, por instituições que abrigam idosos e, até mesmo, por um site que oferece oportunidades amorosas para adúlteros. Em Los Angeles, placas foram colocados na entrada de teatros, advertindo que, ao ingressar no local, o cliente concorda que qualquer disputa será resolvida por arbitragem. O jornal encontrou placas semelhantes em lanchonetes, no Texas.
A prática também se tornou comum em contratos de emprego. Por exemplo, uma ação coletiva foi movida pelos empregados de uma cadeia de restaurante, cujos ganhos derivavam quase que totalmente de gorjetas, mas eles eram obrigados a varrer o chão, guardar copos, pratos e talheres, limpar compartimentos, colocar o lixo para fora, sem ganhar por esses trabalhos.
A ação coletiva foi bloqueada. A cadeia de restaurantes, além de apresentar o contrato, alegou que era uma opção do empregado rejeitar o contrato, quando pediu o emprego. O juiz Berle Schiller disse que não era bem assim: “Na verdade, os restaurantes obrigam os empregados a mastigar um dilema desagradável: desistir de seus direitos ou desistir do emprego”. E lamentou ser obrigado a obedecer as decisões da Suprema Corte.
Na verdade, muitos juízes estaduais lamentam ter de cumprir as decisões da Suprema Corte, porque o banimento de ações coletivas, através de cláusula contratual, é a mesma coisa que dar carta-branca às corporações para fazerem o que quiserem. Além disso, a ação coletiva é o único instrumento do cidadão para impedir que as empresas os prejudiquem e até mesmo adotem práticas empresariais enganosas ou ilegais.
Existem práticas comuns, em alguns bancos, que foram combatidas com sucesso no passado, mas hoje não têm solução jurídica viável. Por exemplo, no caso de pagamentos automáticos (o que é bem costumeiro nos EUA), lançar primeiramente uma ou duas contas mais altas, como a do aluguel residencial, antes de diversas contas e compras pequenas.
Assim, estourado o saldo, cada conta pequena — ou compra no cartão de débito — será contabilizada como saque a descoberto (overdraft). Para cada saque a descoberto, há uma multa de US$ 35.
No primeiro trimestre de 2015, os três maiores bancos dos EUA ganharam mais de US$ 1 bilhão em cobranças de multas por saque a descoberto, de acordo com a Corporação Federal de Seguros de Depósitos, citada pelo “relatório especial”.
Do outro lado da moeda, uma das razões que os advogados das grandes corporações tiveram sucesso em sua empreitada para banir as ações coletivas teve a ver com a ganância de alguns advogados dos demandantes. Eles ganhavam milhões de dólares em cada ação coletiva, enquanto os demandantes recebiam quantias ínfimas ou até mesmo cupons de compra da empresa demandada, no valor de US$ 20 a US$ 50.
Foi um argumento convincente que as empresas usaram para explicar que, afinal de contas, as ações coletivas não beneficiavam os consumidores. Porém, os defensores das ações coletivas discordam, alegando que as ações coletivas representam a única forma de consumidores e empregados lutarem contra más práticas corporativas.
Os procuradores dos estados também reclamam dessa prática abençoada pela Suprema Corte. Eles dizem que perderam uma ferramenta essencial para combater abusos corporativos. Em uma carta ao Birô de Proteção Financeira ao Consumidor (nenhum “birô” de proteção ao consumidor é realmente eficaz nos EUA), procuradores gerais de 16 estados advertiram que as “práticas empresariais ilegais” vão florescer com o banimento de ações coletivas.
Pelo menos, existem demandantes que perdem a causa, mas não perdem o bom humor. Diversos restaurantes de Oakland, na Califórnia, moveram uma ação com a American Express, em 2003, por cobrar taxas 30% mais caras do que o Visa e MasterCard, o que eliminava seus lucros. Mas eles precisavam do American Express, porque esse era o cartão de muitos de seus clientes.
A ação liderada por Alan Carlson, dono do restaurante Italian Colors, tramitou por cerca de dez anos, até resultar em uma decisão da Suprema Corte desfavorável aos restaurantes, por 5 votos a 4. O relator foi o ministro Antonin Scalia, que defendeu alegações muito parecidas com as do presidente da corte, John Roberts, quando ele era advogado de empresas.
Com nada mais a fazer, Carlson e os demais restaurantes, criaram um coquetel de uísque americano, “amargo e difícil de engolir”, como dizia o cardápio, e lhe deram o nome de “Scalia”.
Por João Ozorio de Melo, correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 2 de novembro de 2015, 10h51
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2 de novembro de 2015 |

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