A atualização da lei de arbitragem

0
AdamNews – Divulgação exclusiva de notícias para clientes e parceiros!
“Se tiver que ser agora, não está para vir; se não estiver para vir, será agora; e se não for agora, mesmo assim virá. Estar preparado é tudo.” (Shakespeare)
1- Introdução
Observando a história das civilizações, é fácil perceber que surgem conflitos das relações sociais, e os litígios instaurados têm recebido as mais diversas formas de resolução.
Nos primórdios da humanidade, os conflitos existentes eram resolvidos mediante a imposição da vontade do mais forte sobre o mais fraco, numa verdadeira “vingança privada”, mais conhecida pela doutrina como autotutela.
O termo lex talionis não somente está a se referir a um literal código de justiça “olho por olho, dente por dente”, uma espécie de “castigo-espelho”, mas se aplica à mais ampla classe de sistemas jurídicos que formularam penas específicas para crimes determinados, de modo a serem aplicadas conforme sua gravidade.
É bem verdade que alguns doutrinadores propõem que este foi, pelo menos em parte, destinado a evitar excessiva punição às mãos de qualquer “vingador”, justiça feita pelas próprias mãos.
O código jurídico anglo-saxônico substituiu o pagamento de uma taxa pela retribuição direta: a vida de uma pessoa tinha um valor fixo, derivado de sua posição social, e assim qualquer homicídio era compensado pelo pagamento da taxa adequada, independentemente das intenções do crime.
Apesar de ter sido substituído por novas formas jurídicas, a lex talionis serviu a um objetivo fundamental no desenvolvimento dos sistemas sociais, qual seja, a criação de um órgão (justiça estatal), cuja finalidade era a de avaliar e aprovar as retaliações e garantir que este fosse o único castigo.
Outro meio de resolver as querelas consistia na aceitação de um terceiro que tentaria pôr fim ao impasse, por meio da mediação. Também havia a alternativa de confiar a decisão a uma pessoa estranha ao conflito, que poderia encontrar solução mais justa.
A arbitragem, segundo boa parte da doutrina, foi inicialmente confiada aos sacerdotes que, como representantes das divindades, “garantiam” soluções acertadas.
Observa-se, assim, que a arbitragem insere-se como um dos mais antigos institutos para a solução de conflitos, em que os litigantes concordavam que determinada controvérsia seria solucionada por pessoa de confiança, sábia, experiente, idônea e imparcial.
A arbitragem já era praticada entre os babilônios como forma de abrandar litígios entre as suas cidades-estado.
Em um tratado de 445 a.C., Atenas e Esparta estipularam cláusula compromissória expressa, remetendo-as para via arbitral em caso de conflito.
O Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira destaca que, na Roma antiga, a arbitragem se evidenciava na ordo judiciorum privatorum: o processo da legis actiones e o processo per formulas, ambos com origens históricas que datam de 754 a.C.1
Têm-se registros de que, no século XI, comerciantes procuravam resolver seus conflitos à parte dos tribunais, com base nos usos e costumes.
Na Idade Média, em várias partes da Europa Medieval, decretos locais autorizavam aos bispos o conhecimento de causas que versassem sobre conflitos entre parentes relacionados a partilha ou tutela.
Avançando ainda um pouco mais neste breve resumo histórico, observa-se que, da concepção de Estado, e da entrega da solução do conflito a um terceiro para harmonizar as relações intersubjetivas, exsurgiu a figura do julgador para integrar a estrutura estatal.
Entretanto, o crescimento da sociedade e sua complexa estruturação num mundo globalizado orientaram a adoção de um modelo temperado de divisão de tarefas – que facilitasse o acesso dos cidadãos à Justiça, bem como conferisse alternativas seguras para a solução de conflitos.
Os primorosos estudos e pesquisas de Mauro Cappelletti e Bryant Garth, em sua obra “Acesso à Justiça”2, deixaram claro que “somente quando os cidadãos tiverem maior acesso à Justiça, os direitos se tornarão mais efetivos”. Ficou consignado: “a convenção Europeia para Proteção de Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais reconhece que a Justiça que não cumpre suas funções dentro de um prazo razoável é, para muitas pessoas, uma Justiça inacessível”.
É de se notar que o fenômeno “acesso à Justiça” deve ser entendido como garantia de entrada ao justo processo, sem entraves e delongas, garantia de acesso a uma máquina apta a proporcionar resolução do conflito trazido, com rapidez e segurança, o que nem de longe se limita ao ingresso apenas no Poder Judiciário.
Em relação às “ondas renovatórias” de Cappelletti, a que mais de perto interessa agora é a terceira. De fato, a tendência contemporânea busca reforma nos procedimentos tradicionais sem que as vias alternativas sobreponham-se às funções estatais. Trata-se de opções à jurisdição, complementando sua função e permitindo ao Estado que exerça tal atividade de forma mais competente.
A implementação de mecanismos de pacificação social eficientes, mas que não desvirtuem os ideais de justiça, permite a desobstrução do Judiciário, mantendo as garantias sociais exigidas.
São inúmeros os exemplos de práticas bem-sucedidas no mundo, envolvendo, dentre outros, a negociação, mediação e arbitragem.
Embora se venha aceitando a importância de tais mecanismos, sua adoção no Brasil se revela incipiente quando comparada com outros países.
A legislação relativa aos diversos métodos de solução de controvérsias tornou-se cada vez mais abundante nos Estados Unidos, haja vista que aquele país experimentou uma verdadeira “explosão” de novos processos judiciais, sobretudo nas décadas de 70 e 80, passando o sistema americano a contar com agências públicas e privadas especializadas em métodos alternativos de resolução de conflitos, promovendo, paralelamente, intenso treinamento de mediadores.
Na Europa, percebe-se que diversos países vivem período em que as soluções extrajudiciais de resolução de conflitos estão cada vez mais evidentes.
O legislador brasileiro, de uma forma ainda tímida, previu ao longo da história recente a utilização de alternativas para a resolução de controvérsias, o que pode ser observado nos arts. 667, 772, 776 e 777 do Código Comercial, no art. 764 da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, na Lei n. 7.244, de 7/11/1984, que, ao instituir os Juizados Especiais de Pequenas Causas, valorizou o papel dos conciliadores.
2- Histórico da Lei de Arbitragem no Brasil
A Constituição Federal de 1988 inaugurou uma nova era e buscou facilitar o acesso à Justiça.
Sob a sua égide, foi apresentado em 1992 o Projeto de Lei do Senado Federal n. 78, da autoria do então Senador Marco Maciel, que contou com a participação dos juristas Petrônio Muniz, Carlos Alberto Carmona, Pedro Batista Martins e Selma Maria Ferreira Lemes.
De modo a ensejar sua elaboração, foram consultadas modernas leis e diretrizes da comunidade internacional, com destaque para as fixadas pela Organização das Nações Unidas (ONU), Lei Modelo sobre Arbitragem Internacional elaborada pela United Nations Comission on International Law (Uncitral), a Convenção para o Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras firmada em 1958 na cidade de Nova York e a Convenção Interamericana sobre Arbitragem Comercial firmada no Panamá.
Após algumas vicissitudes, típicas do processo legislativo – agravada, no caso, pela proposta revolucionária de mudança de “mentalidade” em relação à função de prestar jurisdição –, foi editada a lei 9.307, de 23/9/1996, com o seu reconhecido texto dinâmico para a prática da arbitragem, excelente instrumento à realização da justiça.
Após o decurso dos 18 anos da lei 9.307/96, esse notável esforço civilizatório não passou despercebido, deflagrando uma forte tendência que seria observada em diplomas legislativos posteriores.
Apenas para mencionar alguns exemplos:
a) Lei 9.472/97, art. 19 (organização de serviços de telecomunicações): atribui à Anatel a composição administrativa de conflitos de interesses entre as prestadoras de serviços de telecomunicações;
b) Lei 9.514/97, art. 34: contratos relativos ao Sistema Financeiro da Habitação poderão ter as divergências dirimidas por arbitragem;
c) Lei 9.958/00, que inseriu os arts. 625-A a 625-H na Consolidação das Leis do Trabalho – CLT: instituição das Comissões de Conciliação Prévia;
d) Lei 10.101/00, art. 4º, incisos I e II (participação dos trabalhadores nos lucros da empresa): solução de litígios por meio de mediação e arbitragem;
e) Lei 10.303/01, que incluiu o § 3º no art. 109 da lei 6.404/76 (lei das S.A.): possibilidade de divergências entre acionistas serem resolvidas mediante arbitragem;
f) Código Civil de 2002, arts. 851 a 853: admissão do compromisso, judicial ou extrajudicial, para a resolução de litígios entre pessoas que podem contratar;
g) Decreto 4.311, de 2002: promulgou a Convenção de Nova York sobre o reconhecimento e a execução de sentenças arbitrais estrangeiras;
h) Lei 11.079/04, art. 11, inciso III (normas gerais para parcerias público-privadas): emprego da lei 9.307/96 para a solução de conflitos;
i) Lei 11.196/05, que inseriu o art. 23-A na lei 8.987/95 (concessão e permissão de serviços públicos): emprego de mecanismos privados para a solução de disputas.
3- Atualização necessária da Lei de Arbitragem
Nessa mesma linha, a reforma do Judiciário, promovida pela EC 45/04, elevou a status de direito fundamental a adoção de meios que garantam a celeridade na tramitação de processos administrativos ou judiciais. Em seu texto, reforçou a utilização da arbitragem em conflitos trabalhistas, como se vê nas alterações promovidas no art. 114.
Estas circunstâncias, além da inexorável passagem do tempo e sedimentação da jurisprudência – sobretudo a do Superior Tribunal de Justiça -, recomendam olhar mais generoso para a base legislativa deste avançado instituto jurídico, aplicado com sucesso em nosso País e no mundo.
A Comissão criada pelo Senado Federal, por iniciativa do Presidente Renan Calheiros, após seis meses de trabalho profícuo e oitiva de mais de vinte entidades em audiências públicas, elaborou o anteprojeto apresentado ao Parlamento, propondo modificações pontuais na Lei de Arbitragem e avançando com bastante segurança.
A proposta da Comissão é a de que a arbitragem possa ser aplicada aos contratos firmados por empresas com a Administração Pública, deixando assentada essa perspectiva na lei, com especificação clara sobre qual agente público detém poderes para celebrar a cláusula.
O anteprojeto prevê que a arbitragem será permitida para dirimir conflitos societários, com cláusula a ser instituída por assembleia de acionistas, assegurado o direito de retirada aos sócios minoritários.
Outra proposta interessante da Comissão é em relação à instituição da arbitragem para as relações de consumo, restrita aos casos em que o próprio consumidor toma a iniciativa de invocar o instituto.
Também foi incluída a possibilidade de a arbitragem ser utilizada em contratos trabalhistas, para aqueles que ocupem cargos de elevada hierarquia nas grandes empresas. Em tais casos, o trabalhador apenas se submeterá à arbitragem privada se der início ao procedimento.
Cuidou-se também de propor a forma de interrupção da prescrição e os meios de interação do Poder Judiciário com o árbitro, na parte que trata das tutelas de urgência e da carta arbitral, observadas as propostas contidas no projeto do novo Código de Processo Civil – no Senado Federal, PL 166/10; na Câmara dos Deputados, PL 8.046/10.
O cuidado foi grande, para que se procedesse à atualização, sem permitir retrocessos, alguns plasmados em inúmeras propostas que tramitavam no Congresso Nacional para a reforma da Lei de Arbitragem: no Senado Federal, o Projeto de Lei 329/2009; na Câmara dos Deputados, os PLs 2.963/11, 2.937/11, 5.930/09, 5.243/09, 4.019/08, 3.979/08, 913/07, 5.935/05, 4.891/05, 6.141/02, assim como a PEC 369/05.
Após aprovação no Senado, sob condução firme do relator Senador Vital do Rego, atualmente o projeto se encontra na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados (PL 7.108/14), para redação final e posterior reapreciação, no Senado Federal, de duas emendas aprovadas.
Malgrado na Câmara o Presidente e relator na Comissão Especial, Deputados Sergio Zveiter e Edinho Araújo, tenham conduzido com mãos seguras o projeto, há ainda uma emenda preocupante e que merece muita atenção do Senado Federal.
De fato, em sua versão atual, com a emenda feita na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei acrescenta ao parágrafo 1º do artigo 1º o seguinte trecho:
§ 1º A Administração Pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis, desde que previsto no edital ou nos contratos da Administração, nos termos do regulamento.
Referida emenda é preocupante, porque:
a) não há necessidade de regulamentação estipulada em lei; cada órgão federativo tem o poder de estabelecer as diretrizes e critérios que julgar convenientes;
b) a exigência legal de um “regulamento” (atualmente inexistente) poderá trazer insegurança jurídica e incerteza para arbitragens em curso e contratos já firmados;
c) a exigência legal de um “regulamento” fere o pacto federativo, pois a criação de um único “regulamento” pelo Executivo federal usurparia dos demais entes sua prerrogativa de definir os próprios critérios de contratação da arbitragem.
4- Conclusão
A ampliação segura do espectro da Lei de Arbitragem é imperativo para o momento social e econômico em nosso País, de modo que a aprovação do projeto acima mencionado será importante marco para o instituto.
O saudoso Miguel Reale, com sua autoridade, sentenciou:
(…) a arbitragem vem abrir novo e amplo campo de ação nessa matéria, permitindo que a própria sociedade civil venha trazer preciosa contribuição, valendo-se da alteração verificada na experiência jurídica contemporânea no tocante às fontes do Direito, enriquecidas pelo crescente exercício do chamado poder negocial, em complemento à lei, às decisões judiciais e às normas constitucionais3.
As soluções extrajudiciais, em especial a arbitragem, representam o avanço do processo civilizatório da humanidade, que, de maneira consciente, busca mecanismos de pacificação social eficientes. Indiretamente, carrega perspectiva de racionalidade para a jurisdição estatal, hoje assoberbada com o decantado volume de processos.
_________________
1 TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. A arbitragem no sistema jurídico brasileiro. Obra coletiva A Arbitragem na Era da Globalização. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
2 CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Editora Sergio Fabris, 1998.
3 REALE, Miguel. Crise da Justiça e Arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 2, n. 5, abr./jun. 2005, p. 13.
_________________
*Luis Felipe Salomão é ministro do Superior Tribunal de Justiça.
Fonte: Migalhas, Quarta-feira, 19 de novembro de 2014
Share Button
19 de novembro de 2014 |

Deixe uma resposta

Idealizado e desenvolvido por Adam Sistemas.
Pular para a barra de ferramentas

Usamos cookies para garantir uma melhor experiência em nosso site. Leia nossa Política de Privacidade.
Você aceita?

Configurações de Cookie

A seguir, você pode escolher quais tipos de cookies permitem neste site. Clique no botão "Salvar configurações de cookies" para aplicar sua escolha.

FuncionalNosso site usa cookies funcionais. Esses cookies são necessários para permitir que nosso site funcione.

AnalíticoNosso site usa cookies analíticos para permitir a análise de nosso site e a otimização para o propósito de a.o. a usabilidade.

Mídia SocialNosso site coloca cookies de mídia social para mostrar conteúdo de terceiros, como YouTube e Facebook. Esses cookies podem rastrear seus dados pessoais.

PublicidadeNosso site coloca cookies de publicidade para mostrar anúncios de terceiros com base em seus interesses. Esses cookies podem rastrear seus dados pessoais.

OutrosNosso site coloca cookies de terceiros de outros serviços de terceiros que não são analíticos, mídia social ou publicidade.