A descentralização do Judiciário: Mediação e Arbitragem como novas formas de acesso à Justiça para solução de conflitos.

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Uma instituição justa não deve preocupar-se apenas em não condenar os inocentes, deve igualmente ter cuidado para não maltratar os verdadeiros culpados. A solução não está na recusa de toda a violência enquanto tal, nem na atenuação da violência com a multiplicação dos direitos subjetivos dos detidos, mas na inteligência da violência necessária. É pedido à justiça que não se mostre antes de mais violenta, quer dizer, que nunca encare a repressão como primeira e principal resposta, mas preferir maneiras mais convencionais de garantir a autoridade do direito. A justiça deve esforçar-se por inventar maneiras mais dialogadas e mais participativas de garantir a ordem social. Assim, a intervenção da justiça é frequentemente iniciada por um encontro: a audiência de conciliação. O juiz lembra o lado indisponível do direito e fixa a fronteira entre o que é negociável e o que não é (GARAPON, 1998, p. 226-227).
O novo modelo de justiça não poderia ser mais bem simbolizado do que pela casa da justiça que pratica a mediação civil ou penal e a arbitragem comercial. Trata-se de lugares aparentemente exteriores à justiça e, no entanto, ela não está ausente. Eles têm em comum efetivamente, o pedir emprestado à justiça o seu método. O juiz está presente, mas pela sua sombra projetada, ou mesmo imaginada. Trata-se de uma presença simbólica: fala-se dela, faz-se referência a essa presença, antecipam-se as suas reações (GARAPON, 1998, p. 242-243).
A mediação caracteriza-se por uma grande liberdade, mas que, no entanto, não é total. Todos os programas de mediação partem de uma espécie de constituição, um protocolo, um procedimento, que todas as partes devem comprometer-se a respeitar antes de entrarem em um diálogo. Como o acordo não pode ser feito repentinamente, o trabalho começa muitas vezes por uma aprovação prévia acerca da maneira segundo a qual aquele será feito. Sob o benefício deste acordo inicial, as partes poderão abordar todos os aspectos do conflito afastando-se do domínio das categorias jurídicas (GARAPON, 1998, p. 243).
Por seu turno, a arbitragem consiste em dirimir litígios comerciais internacionais através de mecanismos privados, baseando-se na vontade das partes envolvidas. Mas recentemente, assistimos a uma evolução interessante das arbitragens comerciais internacionais realizadas com base em tratados que protegem os investimentos. A partir deste momento, a arbitragem entra numa fase de nacionalização e a figura do árbitro aproxima-se da figura do juiz. Este tipo de arbitragem abandona a esfera privada à qual estava confinada na sua forma clássica, para desempenhar uma função de resolução quase institucional. Esta função pode revestir algumas características inéditas, como a dimensão coletiva do contencioso, o enfraquecimento da confidencialidade e a ausência de intuitu personae na convenção de arbitragem, sendo, atualmente, habitual convocar a intervenção de terceiros a título de amici curiae, isto é, de intervenientes não diretamente implicados no processo, mas interessados devido à sua especial competência ou à sua vocação. É como se este instrumento de resolução de litígios, por excelência privado, adquirisse progressivamente a generalidade, a coerência e a previsibilidade próprias de qualquer norma jurídica (GARAPON, 2006, p. 28-29).
Todas estas novas formas de justiça têm em comum dar uma grande importância ao contato direto entre as partes, com o seu consentimento. Para além de uma técnica de resolução de conflitos, desenvolve-se uma nova concepção do sujeito de direito a quem é reconhecida a capacidade de se defender a ele próprio. Bentes e Salles (2011, p. 108-109) lembram que no pensamento de Paul Ricoeur (1990) o sujeito capaz emerge da dimensão ética e moral do si-mesmo, tornando o homem passível de imputação ético-jurídica. O conceito de capacidade pressupõe a condição de o indivíduo ser o autor de suas ações sobre quais direitos e deveres advindos desse poder-fazer serão depositados, ou seja, permitindo-se a faculdade de agir livre e conscientemente segundo o seu juízo. A capacidade de alguém se designar como autor de suas próprias ações está de fato inserida num contexto de interação no qual o outro figura como meu antagonista ou me coadjuvante, em relações que oscilam entre o conflito e a interação.
O equilíbrio dos deveres e dos direitos de cada um pressupõe um sujeito capaz de estima, mas desenvolve-se no plano de uma moral do sujeito capaz de respeito, antes de passar ao nível dos processos políticos e jurídicos. O respeito é a capacidade de tratar outrem como a si próprio e a si próprio como a outrem, ou em termos filosóficos, não exerças o poder sobre outrem, de tal forma que fiques sem poder sobre ti mesmo (ABEL, 1997, p. 73-74).
Estes novos lugares descentralizados de justiça têm como objetivo não tratar do indivíduo ou intervir diretamente no social, mas favorecer uma autorreflexão crítica de todas as partes envolvidas oferecendo uma instância de discussão. Solicita-se, para fecundar esta reflexão, uma terceira pessoa que mantenha as diferentes partes dentro de certos limites e leva-as assim a encontrar soluções. Fixa limites no tempo, define o objetivo, sanciona os compromissos assumidos e, por fim, garante a justa aplicação do protocolo a todos, começando por ele próprio. Toda a gente se torna juiz no sentido em que cada um deve abstrair-se dos seus interesses particulares para encontrar a melhor solução para todos. Dessa forma, a mediação não é apenas uma alternativa à justiça, uma nova técnica de resolução dos conflitos: ela prefigura a emergência de um novo modo de regulação social. E talvez também uma nova socialidade (GARAPON, 1998, p. 244-246).
Ocorre desta forma, a politização do direito por via judicial, onde o juiz transformou-se em partícipe da sociedade e defensor da democracia por meio prestação jurisdicional que lhes é dada por via da existência de uma jurisdição constitucional, que passa a provocar transformações políticas, sociais e econômicas na sociedade hodierna abrindo caminho para novas formas de acesso à justiça.
REFERÊNCIAS
ABEL, Olivier. Paul Ricoeur: a promessa e a regra. Tradução de Joana Chaves. Lisboa: Piaget, 1996.
BENTES, Hilda; SALLES, Sérgio. Paul Ricoeur e o humanismo jurídico moderno: o reconhecimento do sujeito de direito. In: Études Ricoeuriennes / Ricoeur studies. vol. 2, nº 2, 2011.
GARAPON, Antoine. O guardador de promessas: justiça e democracia. Tradução de Francisco Aragão. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
GARAPON, Antoine; ALLARD, Julie. Os juízes na mundialização: a nova revolução do direito. Tradução de Rogério Alves. Lisboa: Instituto Piaget, 2006.
RICOEUR, Paul. Soi-même comme un autre. Paris: Édition du Seuil, 1990.
Por Deilton Ribeiro Brasil, pós-doutor em Direito pela Università degli Studi di Messina, Itália. Doutor em Direito pela Universidade Gama Filho/RJ. Professor da Graduação e do PPGD – Mestrado e Doutorado em Proteção dos Direitos Fundamentais da Universidade de Itaúna (UIT). Faculdades Santo Agostinho (FASASETE/AFYA). Faculdade de Direito de Conselheiro Lafaiete (FDCL). Professor visitante do PPGD da Universidade de Caxias do Sul (UCS). ORCID: http://orcid.org/0000-0001-7268-8009.
Fonte: Lugar de Opinião – 04/11/2021
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4 de novembro de 2021 |

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